quinta-feira, 14 de julho de 2011

Conversão

De repente, era muito estranho voltar àquele apartamento tão vazio. Não sabia bem como agir e o que fazer. Parecia que não pertencia mais àquele lugar. Os vizinhos tinham mudado, os porteiros também. Não conhecia mais ninguém.


Até a paisagem que via de sua janela tinha mudado. Se antes observava, ainda que de longe, as pessoas passeando pelo calçadão, as babás levando as crianças para brincar na parque mais perto, agora só via o cinza. Concreto. Os novos prédios construídos tapavam sua outrora visão privilegiada.

"Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia"

Agora tinha que tirar as coisas das caixas de mudança e guardar também suas roupas no velho armário de madeira, em parte já atacado pelos cupins.


Engraçado. Aquele armário ficava tão cheio de roupas quando ele era garoto. Sempre desarrumadas, empilhadas na gaveta, é verdade. Hoje, o armário parecia uma imensidão para as poucas mais de cinco camisas sociais e calças. Tinha trazido apenas o essencial, o que julgava realmente importante.

"Eu não encho mais a casa de alegria"

O armário ficava no seu antigo quarto. Aquele mesmo quarto que foi palco de tantas recordações. Ambiente que presenciou inúmeros abraços, aonde o pai recém-chegado de um dia exaustivo no trabalho vinha abraçar seu pupilo, cheio de saudade.


"Os anos se passaram enquanto eu dormia"

Quarto em que ele passava grande parte de seu tempo na adolescência. Fosse vendo televisão ou, principalmente, dormindo. Como controlar aquele sono juvenil tão intenso? E aquela insônia na hora de se deitar? Permanecia um bom tempo deitado na cama, esperando o sono vir.


"E quem eu queria bem me esquecia"

Era no seu quarto também que se trancafiava quando estava triste e chorava. Não tinha coragem de mostrar seus sentimentos frente aos outros. Ainda mais quando chorava após mais uma briga com a namorada dos tempos de colégio.

"Será que eu falei o que ninguém ouvia?
Será que eu escutei o que ninguém me dizia?
Eu não vou me adaptar"

Mas tinha que parar com aquelas lembranças nostálgicas. Agora já estava com seus 30 anos e tinha o seu próprio negócio. Estava recém-separado e tinha uma filha pequena, que estava sob os cuidados da antiga esposa.

Era difícil conviver com aquele turbilhão de informações que passavam em sua cabeça. A paixão por uma garota, o casamento, viagens, o nascimento da filha, as crises de ciúme, os desentendimentos e, por fim, a separação.



"Eu não tenho mais a cara que eu tinha 
No espelho essa cara já não é minha
E quando me toquei achei tão estranho
A minha barba estava desde tamanho"


Todavia, não podia se abater ainda mais. Estava acabado, era verdade. Mas precisava se recuperar e tentar começar uma nova vida. Ainda que fosse naquele frio e antigo apartamento.



Para recuperar as energias, decidiu tomar um bom banho. Como de costume, ligou o rádio enquanto fazia  a barba, antes de entrar no chuveiro.

No rádio, uma música de sua adolescência tocava.

3 comentários:

  1. Nossa, me identifiquei demais com esse texto. As vezes passo por situações semelhantes na minha vida (claro que com as suas devidas exceções!). Parabéns pelo texto Maria Clara, seu blog como sempre em grande nível. Continue assim! Beijos...

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  2. Deixei um "desafio" pra ti no meu blog! Confira (não é virus): http://nicolasqueiros.blogspot.com/2011/07/desafio-fotografico.html

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  3. "There are places I remember all my life, though some have changed, some forever, not for better, some have gone and some remain."

    Muito bom :)

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